O cenário desta obra “Auto da barca do Inferno” de Gil Vicente consiste em duas embarcações, que se encontram num porto imaginário onde todas as almas chegam quando morrem. A acção da peça começa com a chegada dos personagens a esse porto em busca da vida eterna.
O personagem que surge logo de seguida é o Onzeneiro Ambicioso. Este traz consigo uma grande bolsa onde guardava o dinheiro que roubava das pessoas quando vivo em suas agiotagens e acaba por ser condenado pela avareza e ganância.
Quase enganado pelo Diabo que o alicia a entrar na sua barca, afigura que nos aparece seguidamente é o Parvo, o ingénuo Joane. Este acaba por escapar proferindo palavrões quando descobre o destino dessa barca. Ao se deparar com o anjo é acolhido; a sua sentença é de glorificação da modéstia e humildade.
O sapateiro ladrão chega carregado de pesadas formas que apontam para a sua profissão. Quer saber onde está a barca destinada aos que morreram confessados e comungados mas o diabo lembra-o de que durante anos ele roubou o povo através do seu ofício e, por isso, acaba por ser condenado pela má fé no comércio e pela sua hipocrisia religiosa.
O Frade namorador surge-nos com uma moça pela mão, cantarolando e bailando, envergando sobre o hábito a armadura de esgrimista. O frade recebe condenação por falso moralismo religioso.
A Alcoviteira Brísida Vaz vem de seguida, acompanhada por um grupo de moças que ela explorou, entregando-as à prostituição. A sua sentença é a condenação pelos envolvimentos em feitiçaria e prostituição.
O Judeu rejeitado chega trazendo um bode nas costas, animal ligado aos sacrifícios da religião judaica. O judeu acaba também por ser condenado.
O corregedor (o mesmo que juiz, nos dias de hoje), chega, apoiado numa vara e transportando consigo uma resma de processos.
Logo de seguida vem o procurador carregando consigo livros jurídicos.
O personagem que se segue (o enforcado) aproxima-se, trazendo ainda ao pescoço a corda com a qual se enforcou. Mais uma vez é colocada em destaque a crítica à burocracia corrupta.
Os Quatro Cavaleiros da Ordem de Cristo são os últimos personagens. Trazem armas e a cruz de Cristo nas suas vestes. O facto de terem morrido a lutar numa batalha pelo bem leva-os a serem aceites na barca do Anjo.
E assim termina uma das mais geniais obras dramáticas portuguesas: as duas barcas partem em direcções diferentes, uma para o inferno e outra para o paraíso.
"Língua Portuguesa" - 9ºAno, Volume II- Texto dramático; Texto Editora
Muitas das críticas que Gil Vicente fez no "Auto da Barca do Inferno" são actuais: a tirania, a mentira, a injustiça, a corrupção são vícios de ontem e de hoje. No entanto, se a peça tivesse sido escrita no nosso tempo, outros seriam os protagonistas de tais vícios.
Naquele tempo, o Fidalgo estava convicto que a sua condição social tudo lhe permitia sem ter que prestar contas a ninguém. Hoje em dia, ainda há quem pense deste modo, apesar de a Constituição da República Portuguesa no seu artigo 13.º afirmar que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei". Na verdade, na sociedade actual continua a existir gente privilegiada ou pelo seu estatuto social ou pelas suas posses.
O Onzeneiro emprestava dinheiro a juros, processo de empréstimo completamente aceite, banalizado e até essencial nos nossos dias. Nos dias que correm, o substituto do Onzeneiro é o banco ou os bancos, pois são eles que emprestam dinheiro e cobram os respectivos juros. Neste sentido, quer o Onzeneiro, no tempo de Gil Vicente, quer os bancos, no nosso tempo, exploram aqueles que mais necessitam.
O Sapateiro era uma personagem que explorava os seus clientes levando a cada um o dinheiro que bem entendia pelo trabalho praticado. Nos tempos de hoje, existe a Defesa do Consumidor ou Instituto do Consumidor destinado a "promover a política de salvaguarda dos direitos do consumidor...". Apesar da existência deste instituto, assistimos diariamente a queixas de cidadãos que se sentem burlados e enganados.
O Corregedor do "Auto da Barca do Inferno" não era um bom servidor da justiça. Como podemos constatar a propósito da cena do Fidalgo, no séc. XVI, a justiça não era igual para todos, pois nem todos estavam sujeitos à mesma lei, o que hoje seria inaceitável nas sociedades contemporâneas e democráticas , onde a justiça tende a ser cada vez mais aperfeiçoada, mais justa. Actualmente, a justiça não visa apenas o castigo, mas procura ajudar aqueles que erraram a tornar-se pessoas melhores.
Portugal esteve ligado à criação da "Amnistia Internacional" organização que defende o direito dos presos e que luta contra a pena de morte. Assim, o quadro do Enforcado presente no "Auto da Barca do Inferno" será impensável na sociedade portuguesa e outras. No entanto, a pena de morte continua a existir em muitos países, mesmo em países considerados civilizados como os Estados Unidos. O caso mais recente e exemplificativo da existência e prática da pena de morte é a execução de Saddam Hussein.
A partir dos exemplos citados, podemos concluir que a obra "Auto da Barca do Inferno" continua actual, pois os erros cometidos no séc. XVI, continuam a repetir-se no presente século.
- Só me preocupava se dissessem mentiras a meu respeito, da minha obra e da minha vida. Tirando isso, acho que não é preciso saber muitos pormenores acerca dos autores. Verdadeiramente importante, isso sim, é o conhecimento das suas obras, e disso não posso queixar-me porque acho que a minha obra como dramaturgo e como poeta é hoje razoavelmente conhecida em Portugal e até noutros países, embora ainda pudesse ser ainda melhor conhecida. E eu falo só das obras que chegaram até aos dias de hoje.(…)
- Não podemos deixar de lhe fazer uma pergunta que surge sempre que se fala do seu nome. É verdade que Gil Vicente dramaturgo e Gil Vicente ourives da Corte, criador da custódia de Belém, são uma e mesma pessoa?
- Já calculava que me fossem fazer essa pergunta, mas, por muito que me custe, não vou dar-vos uma resposta precisa.
- Então porquê?
- Porque, meus queridos amigos, prefiro que o mistério se mantenha. Assim, haverá sempre quem tenha razões para continuar a escrever sobre mim e sobre esse enigma que ainda não foi resolvido. O que posso dizer e talvez vos ajude é que um dramaturgo-poeta é talvez já uma espécie de ourives.
- Explique-nos porquê?
- Com muito gosto vos tentarei explicar. É que um dramaturgo-poeta trabalha as palavras, com os seus sentidos e os seus sons, com o mesmo cuidado e o mesmo carinho com que um ourives de talento trata os metais preciosos e as pedras preciosas, sejam eles quais forem, tendo sempre em vista a ideia de beleza e de harmonia.
- O senhor tem a noção de que foi um dos maiores dramaturgos e poetas da Península Ibérica no seu tempo, não tem?
- Dizem que sim, mas não sei se deva acreditar que o fui de facto. O que sei é que antes de mim só havia uns autos litúrgicos, organizados pela Igreja, uns momos palacianos e umas procissões religiosas. Nada mais.
- Portanto, a novidade começa consigo.
- Sem vaidade, ou talvez como com alguma justa vaidade, posso dizer que sim.
- E, para quem não tenha atrás de si uma tradição teatral forte, Mestre Gil escreveu bastante.
- É verdade que sim. Escrevi mais de cinquenta textos teatrais, dos quais quarenta e oito ficaram conservados até hoje.
- E foram todos escritos em português?
- Não. Vinte foram escritos em português e doze em castelhano.
- Então e os outros?
- Bem, nos outros as personagens falam em línguas e dialectos que correspondiam aos seus países de origem. (…)
- E como foi que Mestre Gil seguiu o caminho da inovação na escrita?
- É difícil dizer ao certo. Acho que vi e ouvi muitas coisas que me influenciaram e que me levaram a fazer do teatro o meu meio natural de expressão.
- E não acha que esteve muito à frente do seu tempo para ser ainda tão moderno nos dias de hoje?
- Acho que fui, acima de tudo, um homem do meu tempo, nos melhores como nos piores aspectos. Fui, sem ser um nobre, um homem da Corte, que herdou muitas coisas da Idade Média e do seu imaginário. Acho que fui religioso sem deixar de ser crítico em relação aos erros da Igreja; acho que acreditei sempre no Homem e pouco nos homens. Enfim, fui um homem do meu tempo.
- Quem lê o seu teatro, percebe que tudo foi pensado para ser representado com muito pouco meios.
- Isso é muito bem observado. O meu teatro ainda hoje exige poucos recursos, poucos meios para ser representado. Assim, pensei eu que ele podia ser representado em quase todos os lugares. Desde os salões da Corte até às praças públicas.
- Mas Mestre Gil costumava de dispor dos meios de que precisava e não de meios pobres e insuficientes.
- Isso também é verdade. Eu já tinha, mesmo antes de me tornar o dramaturgo que vocês hoje conhecem, a responsabilidade de organizar as festividades cortesãs. Em 1521, deram-me a tarefa de organizar a entrada triunfal de D. Manuel e da sua nova rainha
LETRIA, José Jorge – Conversa com Gil Vicente, Terramar Ed.